terça-feira, 4 de agosto de 2009

O Último Romance?









Meu Velho amigo diário, não sei se ainda lembra de mim, afinal faz tanto tempo que não me confidencio em suas linhas tão nostálgicas, mas caso não lembre sou eu a Ana. Sei que deve estar pensando que estou muito velha para escrever em diários, na verdade até eu achava isso, mas pensando bem, percebi que essa sim é a idade exata para escrever, quando se é jovem a memória funciona com riqueza de detalhes, tudo acontece todo o tempo e muda com a mesma velocidade, agora na idade em que me encontro minha memória é tão fraca quanto meus ossos e tão cheia de detalhes quanto uma foto tirada sem flash no escuro, os fatos já não acontecem com a mesma velocidade, mas quando acontecem vem pra ficar.

E foi isso que me trouxe a essas linhas novamente, nada mais que a vontade de lembrar-me de cada detalhe de tudo que aconteceu de uns tempos pra cá, quando alguém especial entrou em minha vida.

Tudo começou quando fui convencida por meu filho Carlos, que veio me visitar no início do ano, a mudar para um "Condomínio especializado em pessoas da terceira idade", um mero eufemismo usado para disfarçar a palavra "asilo", veio mesmo a calhar, como eu temia essa palavra. Viúva muitos anos, vivia solitária em um apartamento apertado e cheio de recordações do qual eu raramente saia, não que isso fosse ruim, gosto do meu silêncio, mas tenho que concordar com meu filho que silêncio demais pode ser perigoso para o corpo e para mente às vezes.

Assim que me mudei para aquele condomínio de tons tão tranquilizadores quanto um Hospital, fui bombardeada por olhares curiosos de toda a vizinhança, de certa forma aquilo era quase tão deprimente quanto meu antigo lar, todas aquelas pessoas esquecidas ali com suas histórias estampadas na pele, buscando na minha chegada o mais novo assunto do mês, encarei meus vizinhos vestindo um olhar ameaçador, essa nem sempre foi uma atitude comum, mas é que eu estava passando por uma daquelas crises existências que aparecem de tempos em tempos.Li em uma revista que aos 40 anos passamos pela "crise da meia-idade", como eu tinha quase o dobro dessa idade deduzi que eu estava passando pela "crise da idade-inteira", que acredite, é mais cruel que todas as outras juntas e desde que ela havia chegado eu usava minha cara amarrada, sem hesitar, para espantar todos que tentavam se aproximar, essa tática costumava ser infalível, até uma pessoa de alegria contagiante e infinitamente perseverante surgir em minha vida.

Conheci Rubens ou Seu Rubens, como era carinhosamente chamado, na fila da farmácia do condomínio a quase um ano atrás, eu estava extremamente irritada devido a lentidão infernal que era comum em tudo naquele lugar. Tentei me acalmar, respirar fundo, mas todo aquele tempo ali era insuportável, até que explodi como uma bomba relógio comecei a gritar feito uma louca com o caixa e com todos que me olhavam atravessado, não me esqueço de todos aqueles rostos enrugados me julgando e me achando ainda mais louca que eu era, de certa forma tinham razão, como aquilo me deixava ainda mais furiosa. Então Rubens veio em minha direção e encheu até o topo a cesta que eu levava as compras com caixas de Remédios, fiquei estática olhando para ele sem entender aquela ação, foi quando se virou pra mim fazendo graça e disse: "pronto senhora aqui estão todos os calmantes que achei nesta farmácia, caso precise, tive o cuidado de colocar um Tarja Preta dos brabos também, são por minha conta", abriu um sorriso tão doce que acalmaria até uma leoa faminta. No mesmo instante percebi o quanto eu estava sendo ridícula e comecei a rir incontrolavelmente, fazia muito tempo que eu não ria daquela forma.
Fiz minhas compras e segui pra casa acompanhada por Rubens que não parava de me fazer sorrir, com seu modo único de ver a vida, costumava dizer que era um "Gaiato nato".

Com o tempo começamos a nos encontrar ao acaso por toda parte daquele condomínio apático, Rubens sempre vinha com o seu sorriso contagiante e bons assuntos, sejamos francos, não é muito difícil ter bons assuntos nessa idade, assunto que rende é falar dos filhos, dos netos, da novela. Rubens costumava dizer que: "literatura pra ter assunto com velho era bula de remédio". Quase todas as frases são no pretérito imperfeito do modo indicativo, a seqüência de palavras "No meu tempo... ’ era tão comum nas conversas quanto uma pausa antes de começar um novo assunto. falávamos de Música, Cinema e Literatura, concordávamos mutuamente que todos esses itens eram como um bom vinho, as safras antigas eram sempre as melhores.
Nossos encontros se tornaram tão prazerosos que dávamos uma ajudinha ao acaso às vezes, soltávamos no ar coisas do tipo: "amanhã acho que vou dar uma passadinha no bingo lá pelas 19h, ouviu? 19h...", e mais uma vez estávamos nós dois ali, lado a lado fascinados pela vivência um do outro. Isso se arrastou por meses até que paramos de vez de jogar toda a responsabilidade para o acaso e começamos a marcar nós mesmos nossos "encontros".
A os encontros da terceira idade, nada tem em comum com o romantismo da juventude, as idas ao cinema são substituídas pela espera no consultório médico, sair pra comprar sorvete é trocado pela demorada fila da farmácia, sair pra dançar vira uma partida de dominó. Isso pode até parecer monótono, mas o mais incrível disso tudo é que a sensação de fazer essas coisas aparentemente comuns com Rubens era tão empolgante quanto os encontros da juventude.

Tudo foi ganhando grandes proporções e Rubens não fazia questão de esconder que estava interessado em mim, mas sempre era repreendido por mim, que desconversava, irremediavelmente, todo assunto que levasse a o possível constrangimento de falar do que sentíamos um pelo outro.

Na verdade eu ainda não sabia exatamente o que sentia até hoje à tarde quando fomos ao consultório do Dr. Marcos. Rubens pediu pra ser atendido primeiro, achei estranho, ele evitava ao máximo as consultas, disse que iria só fazer umas perguntas e logo retornaria, saiu do consultório poucos minutos depois segurou a porta para que eu entrasse e ficou me esperando na recepção.

Mal entrei no consultório comecei a falar de forma ininterrupta o que me preocupava, já tinha todas as minhas dúvidas na ponta da língua, queria saber o motivo de eu estar tão estranha de uns tempos pra cá. Queria saber porque meu coração batia tão acelerado, achei que poderia ser um princípio de algum problema cardíaco, os calores que sentia até nos dias frios, seria a menopausa? Tremores, falta de atenção, eu estava mais avoada que o normal, será que eu estava ficando esclerosada? Quando terminei de falar o Dr. Marcos sorriu discretamente e disse: "os sintomas de sua patologia já foram diagnosticados faz séculos, ao contrário do que pensa os especialistas nessa área não são os Médicos e sim os poetas, e seu diagnóstico é mais simples do que imagina, você esta sofrendo de Amor". e continuou com um tom sarcástico " Se ainda tiver dúvidas, recomendo que leia alguns livros do Dr. Shakespeare"

Aquilo era a mais pura verdade, eu estava apaixonada por Rubens, tardiamente claro, nem eu nem ele estávamos na idade de nos apaixonarmos, nossos corações mal batiam por nós mesmos quanto mais um pelo outro. Aquilo não tinha cabimento nenhum, se minha vida fosse um filme, eu diria que nos conhecemos nos créditos finais quando todos estão saindo do cinema sem nem ao menos ler o que aparece escrito.
Quando eu já estava saído do consultório Dr. Marcos fez uma confissão sussurrando para que ninguém além de mim o ouvisse: "Sei que é totalmente antiético de minha parte, mas em nome do amor tudo é válido. Seu Rubens acabou de vir ao meu consultório, pedindo pra que eu receitasse um bom remédio para memória, pois ele não queria esquecer nenhum momento que passava com Você Ana"

Ao ouvir aquelas palavras sai completamente confusa do consultório, perdida em meus pensamentos, sai sem nem me despedir, Rubens me levou até minha casa, preocupado com minha saúde, quando terminei de dizer pela milésima vez que não tinha nada de errado comigo ele então falou que tinha que me dizer algo. Fiquei tão nervosa que não sabia o que fazer, então ele me olhou fixamente nos olhos tentando enxergar algo além de minhas pupilas desgastadas e disse com a determinação que só os apaixonados tem, que me amava, senti verdade em tudo o que dizia, mais eu não sabia como lidar com aquilo naquele momento, como eu estava muito confusa acabei sendo grossa, disse coisas que não deveria dizer, falei que éramos velhos demais para nos apaixonarmos e pedi para que fosse embora, por um instante vi aquele sorriso contagiante sair de cena e dar lugar a uma lágrima solitária que passeava por seu rosto até repousar em seu peito que abrigava naquele momento um coração partido.

Como me arrependo de ter dito aquilo, mas amanhã Rubens e eu estaremos juntos novamente e vou dizer pra ele que eu também o amo, e que nunca é tarde demais para o amor.
Esse diário foi encontrado ao lado do corpo já sem vida de Ana quando alguns amigos foram avisa-la na manhã de sábado que Rubens havia falecido enquanto dormmia durante a noite. Dizem que ambos tinham no semblante um olhar esperançoso só visto nas pessoas que já encomtraram seu grande amor.

Este pode ter sido um final triste para uma história de amor, mas eu gosto de acreditar que esse não tenha sido mesmo o fim.

" De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma para a eternidade.
Se isso é falso, e que é falso alguém provou,Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou."
William Shakespeare

Dedico esse texto e todas as minhas palavras à Thainá Rosa, minha namorada e fonte infinita de inspiração, a quem atribuo minha felicidade e "meu olhar esperançoso".
Paulo R.S Monfort